segunda-feira, 3 de junho de 2013

SARAMAGO: "A HISTÓRIA DA HUMANIDADE É UM DESASTRE CONTÍNUO" - SABATINA NA "FOLHA DE SÃO PAULO"


SARAMAGO: "A HISTÓRIA DA HUMANIDADE É UM DESASTRE CONTÍNUO" - SABATINA NA "FOLHA DE SÃO PAULO"

JOSÉ SARAMAGO, Prêmio Nobel de Literatura, o único ganhador deste laurel que escreve em língua portuguesa, foi sabatinado pelo jornal "FOLHA DE SÃO PAULO", quando brindou seus interlocutores e público com opiniões incisivas, instigantes e lúcidas. Deus, Bíblia, acordo ortográfico, marxismo, literatura brasileira, estes os temas principais abordados por Saramago. Se quiser assistir ao vídeo da sabatina, clique na ilustração acima (1h30 de duração; se preferir, há, na pagina da Folha - à direita da tela - seleção dos tópicos por assunto, em blocos curtos).
Adiante, a suma da reportagem publicada na Folha do dia 29.11.08, com pequenas modificações de pontuação e destaques em negrito, para adaptar o texto a este espaço.
"HUMANIDADE: A história da humanidade é um desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz. Se ainda fosse só a guerra, em que as pessoas se enfrentam ou são obrigadas a se enfrentar... Mas não é só isso. Esta raiva que no fundo há em mim, uma espécie de raiva às vezesincontida, é porque nós não merecemos a vida. Não a merecemos. Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem. O animal, para se alimentar, tem que matar o outro animal. Mas nós não, nós matamos por prazer, por gosto. Se fizermos um cálculo de quantosdelinqüentes vivem no mundo, deve ser um número fabuloso. Vivemos na violência. Não usamos a razão para defender a vida; usamos a razão para destruí-la de todas as maneiras -no plano privado e no plano público.
MARXISMO HORMONAL: Desde muito novo orientei-me para a consciência de que o mundo está errado. Não importa aqui qual foi o grau da minha militância todos esses anos. O que importa é que o mundo estava errado, e eu queria fazer coisas para modificá-lo. O espaço ideológico e político em que se esperava encontrar alguma coisa que confirmasse essa idéia era, é claro, a esquerda comunista. Para aí fui e aí estou. Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer? Assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista.
CRISE ATUAL: Marx nunca teve tanta razão quanto agora. O trabalhoconstrói, e a privação dele é uma espécie de trauma. Vamos ver o que acontece agora com os milhões de pessoas que vão ficar sem emprego. A chamada classe média acabou. Ou melhor: está em processo de desagregação. Falava-se em dois anos [para a recuperação da economia depois da crise financeira]; agora já se fala em três. Veremos se Marx tem ou não razão.
DEUS: Por que eu teria de mudar [a concepção de Deus após a doença]? Porque supostamente me salvou a vida? Quem me salvou foram os médicos e a minha mulher. E Deus se esqueceu de Santa Catarina? Não quero ofender ninguém, mas Deus não existe. Salvo na cabeça das pessoas, onde está o diabo, o mal e o bem. Inventamos Deus porque tínhamos medo de morrer, acreditávamos que talvez houvesse uma segunda vida. Inventamos o inferno, o paraíso e o purgatório.
IGREJA, BÍBLIA: Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle, não tanto das almas, porque à igreja não importam as almas, mas dos corpos. O sonho da igreja sempre foi nos transformar em eunucos. A Bíblia foi escrita ao longo de 2.000 anos e não é um livro que se possa deixar nas mãos de um inocente. Só tem maus conselhos, assassinatos, incestos...
ACORDO ORTOGRÁFICO: Em princípio, não me parecia necessário. De toda forma, continuaríamos a nos entender. O que me fez mudar de opinião foi a idéiade que, se o português quer ganhar influência no mundo, tem de adotar uma grafia única. Se Portugal tivesse 140 milhões de habitantes, provavelmente teríamos imposto ao Brasil a nossa grafia. Acontecem que os 140 milhões estão no Brasil, e o Brasil tem mais presença internacional. Perderíamos muito com a idéia de que o português é nosso, nós o tornaríamos uma língua que ninguém fala. Quando acabou o "ph", não consta que tenha havido uma revolução.
LITERATURA BRASILEIRA: Houve um tempo em que os autores brasileiros estavam presentes em Portugal, e em alguns casos podíamos dizer que conhecíamos tão bem a literatura brasileira quanto a portuguesa. GracilianoRamos, Jorge Amado, os poetas, como João Cabral [de Melo Neto], Manuel Bandeira, essa gente era lida com paixão. Para nós, aquilo representava a voz do Brasil. Agora, que eu saiba, não há nenhum escritor brasileiro que seja lido com paixão em Portugal. Culpo a mim, talvez, por não ter a curiosidade. Mas também não temos a obrigação de descobrir que nem sabemos se existe."

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