Quem ainda não
assistiu, vale a pena conferir.
Este é a crítica de
Isabela Boscov,
publicado na sessão
Cinema da Revista Veja
Edição 2133 / 7 de
outubro de 2009.
Em Bastardos
Inglórios, uma
unidade voluntária de soldados judeus espalha o pânico entre os nazistas na
França ocupada. É uma fantasia típica de Quentin Tarantino – mas, da escrita
soberba à escolha dos atores excelentes, denota o avanço notável do diretor
rumo à maturidade pessoal e artística
Em 1941, diante de uma pequena casa de
fazenda, em algum lugar montanhoso da França, o sol brilha, os sinos das vacas
são ouvidos ao longe e o pai corta lenha, enquanto a filha pendura a roupa no
varal. Pelo lado do lençol que se levanta com o vento, porém, ela vê um grupo
de soldados vindo pela estrada, e imediatamente esse quadro tão pitoresco de
rusticidade ganha um caráter diverso. Em vez da paz rural, o que se percebe
agora é o isolamento da casa e quanto o pai e suas três filhas estão indefesos
ali. Ajuda muito que a trilha escolhida para a cena seja um trecho original de
Ennio Morricone para os faroestes-espaguete de Sergio Leone, capaz de anunciar
como nenhuma outra coisa jamais composta para o cinema a solidão e o perigo.
Mas os enquadramentos exímios e o tempo impecável em que transcorre essa
sequência de abertura de Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, Estados Unidos/Alemanha, 2009), que estreia no país na
próxima sexta-feira, são obra e graça de Quentin Tarantino – tanto eles como a
destreza com que o fazendeiro francês e o tenente-coronel alemão Hans Landa,
que acabou de chegar com seus soldados, vão descrever círculos um em torno do
outro, num enfrentamento que tem como objeto o paradeiro de uma família judia,
e em que as armas serão um copo de leite, dois cachimbos, as três meninas e o
domínio de ambos os personagens do inglês e do francês.
Na maneira como Tarantino retrai e prolonga o tempo previsto
para chegar ao desfecho, essa abertura é eletrizante. E ilustra também a
distância que o diretor vem percorrendo rumo à maturidade, em um caminho já
indicado na segunda parte de Kill
Bill. Tarantino é capaz, agora, de imaginar não só um jogo entre
dois personagens, mas um porquê para ele que vá além de suas contingências
narrativas. Consegue ouvir a beleza de um diálogo travado, não meramente
disparado. E aprendeu a apreciar a utilidade emocional da pausa e dos pequenos
milagres que os bons atores podem proporcionar. O pouco conhecido Denis
Menochet, que interpreta o fazendeiro, é excelente, e com cada pequeno gesto
acumula mais algum dado sobre a vida e o passado de seu personagem, ainda que
nem uma palavra se diga sobre eles. E o ainda menos conhecido Christoph Waltz,
que faz o nazista, é espetacular: um ator de precisão absoluta, que rouba o filme
com a anuên-cia do diretor – e dos outros atores, igualmente galvanizados por
sua performance.
O tenente-coronel Hans Landa, assim, será ainda mais essencial
para o filme do que os próprios bastardos inglórios – uma unidade especial de
soldados judeus voluntários, que penetram na França ocupada para assassinar
nazistas com selvageria e dessa forma espalhar o pânico. Liderados pelo tenente
Aldo “O Apache” Raine (Brad Pitt), um matuto do Tennessee com um sotaque
caipira mais espesso que melaço e o hábito de escalpelar suas vítimas, os
bastardos são uma criação típica de Tarantino (que, claro, não deixou de ser
ele mesmo): um grupo de homens que se comunicam por meio de frases de efeito –
bom efeito, aliás – e se dedicam à violência com prazer, sem pesar nem drama de
consciência. Quando eles estão em cena, o filme adquire continuidade com os
outros do diretor em tema, estilo e volume bruto de sangue. Quando não,Bastardos Inglórios assinala uma espécie de ruptura.
Em um processo análogo ao do canadense David Cronenberg, que
depois de explorar a fundo as possibilidades da escatologia se renovou com o
classicismo de Marcas
da Violência e Senhores do Crime, Tarantino estuda aqui as propriedades
desestabilizadoras da elegância. Cada ato do filme agrupa um determinado número
de personagens em um cenário delimitado – uma taverna, um cinema, uma mesa de
restaurante. Todos tratam de alguém dissimulando e correndo grande risco; mas
os duelos são travados por meio de insinuações. Assim, a estrela de cinema e
agente dupla Bridget von Hammersmark (a alemã Diane Kruger, que depois de quase
afundar com Troiahoje
só faz brilhar) tem de colocar aliados e alemães em volta de uma rodada de
bebidas sem que ninguém se traia, e de forma a que aquilo que tem de ser
descoberto o seja. A judia disfarçada Shosanna (Mélanie Laurent), por sua vez,
tem de repudiar as atenções insistentes de um herói de guerra nazista (Daniel
Brühl) sem antagonizá-lo – e ambas, em momentos diversos, terão de sobreviver
aos ataques de cordialidade, efusão e malevolência do tenente-coronel Landa.
Tão fabulosa é a escrita dessas cenas que a mera menção a um copo de leite
causa uma vertigem de medo.
Bastardos Inglórios, contudo, não é um filme sobre a II
Guerra. Não é nem mesmo uma história fantasiosa passada na II Guerra, já que
trata de dois complôs paralelos para pulverizar, literalmente, o alto-comando
nazista. É um filme passado em todos os outros filmes já feitos sobre o tema,
com vários elementos dos noir dos anos 30 e dos faroestes de John Ford e Sergio
Leo-ne acrescidos à sua encenação. É um filme que pertence só à história do
cinema, não à outra, a mais ampla. Mas, como no segundo Kill Bill, Tarantino mostra que descobriu a
existência de outro mundo para além desse território imaginário – e que
entendeu que, quanto mais se alimentar dele, mais verossímil e envolvente será
sua fantasia.

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