A GRANDE CHANCE
Carlos Alberto tinha uma vida
simples à beira da estrada, sua casa ficava a cinco metros do asfalto, tinha
uma terra, que herdou do pai, onde plantava umas mudas de milho e uns pés de
banana, além de ter uma vendinha, pequena mesmo, para aquelas pessoas que
estavam cansadas da estrada e queria dar uma paradinha, tomar um café e comer
um pão com linguiça.
Carlos cuidava do negocio
familiar com a mulher Cibele e os dois filhos Abel e Matusalém.
Filhos bem diferentes.
Abel tinha dezessete anos,
robusto, bonito igual à mãe, tinha cabelos pretos e olhos verdes, pele morena
curtida de sol, Carlos pensava que o menino era de outro mundo, religioso,
preocupado com o irmão,tudo porque Matusalém nasceu com um defeito congênito na
perna: elas eram rudimentares, coisa que so acontecia na década de oitenta
ligada a talidomida, os medico não sabem dizer porque, pois Cibele não tomava
nenhum remédio na época, com quinze anos, fazia tudo, ativo e andava de cadeira
de rodas.
Abel era um adolescente atípico, vivia no
mundo da lua, ele gostava do campo, dos bichos, da igreja e dos livros, as
pessoas achavam que seria padre, porém Abel negava, queria casar e ter filhos,
constitui uma solida moral herdada do avô materno.
O avô morreu no ano passado,
ex-professor de português, era o esteio e o equilíbrio da família, também o
ultimo parente vivo, Abel herdou o caráter e aparência do avô.
Quando o avô morreu Abel tinha
apenas dezesseis anos, foi a única vez que chorou com a alma, herdou todos os
seus livros, ele mesmo construiu um quartinho onde guardava os livros, ficava
trancado ali por horas, esquecia-se do tempo, então o pai gritava:
-Abel vem trabalhar, larga os
malditos livros – dizia sem pensar, Abel sabia que o pai gostava do habito que
o filho tinha de ler.
Matusalém tinha que ir junto para
a lida na roça, Abel o carregava em um carrinho de mão, muitas vezes sentia uma
dor pelo irmão, sem as pernas não poder seguir os passos do pai, ele ficava
grotesco sobre o carrinho de mão enquanto eles plantavam o milho, batia palmas.
-Pai não é melhor deixar o
Matusalém em casa? – disse Abel uma vez.
-Tem vergonha do seu irmão? –
nunca mais falou no assunto.
A vida era tranquila, acordavam,
havia a rotina da escola, a lida na roça, tratar dos animais, tudo feito com
método, passavam pelos dias rapidamente, diferentes da cidade grande onde tudo
era truncado, pelos filas e engarrafamento, pelo tempo que urge e ruge contra
as pessoas, horário o compromisso.
O filho Matusalém estava em uma escola
especial e Abel que levava de bicicleta, ou de carrinho de mão, eles sofriam
com a brincadeira dos outros meninos.
-Já vai levar o seu irmão
aleijado, Abel? – disse um.
-Dá uma pedrada neles – dizia
Matusalém.
-Deixa pra lá, essa gente é assim
mesmo – contemporizava o calmo Abel.
A velocidade dos caminhões e
carros era extravagante, às vezes o barulho nem deixava dormir.
O problema todo é que a frente da
casa de Carlos tinha aquela curva maldita, chamada curva da morte, uma curva
tão acentuada e que muitos caminhões caiam na ribanceira, a população local
chamou o lugar de cemitério de caminhões.
A coisa era tão feia que havia um
boato de que a alma de um caminhoneiro andava por lá, ninguém descia a
ribanceira, alguns saqueadores de cargas tentavam entrar pelas terras de Carlos
Alberto, porém havia um rio e a descia era muito feia, íngreme, só para
alpinistas experimentados, só quem conhecia a passagem pela caverna da Broca conseguia
chegar do outro lado, devia ter mais de dez caminhões lá embaixo.
A retirada desses caminhões era
difícil e dispendiosa, principalmente no critério financeiro, porém alguns
dessas empresas mandavam gente especializada para resgatar a carga, outros
deixavam lá, pois o custo da retirada era maior, então devagarzinho ou a carga
ia apodrecendo ou era saqueada.
Alguns casos levavam-se meses
para se descobrir que o caminhão de certa empresa havia caído bem ali, então os
corpos de caminhoneiros e ajudantes ficavam apodrecendo lá embaixo, Carlos
sabia de quatro deles que caíram na semana anterior, porém não podia avisar a
policia, pois a carga lhe interessava, Jô não conseguia trazer toda, quando
acabasse informaria a autoridade policial.
O local era desconhecido, muitos
caminhoneiros desviavam por ali para fugir das balanças, ninguém ficava sabendo
da queda até que o próprio Carlos comunicava a empresa, as vezes era carros de
passeio mesmo.
Parte do seu modo de vida vinha
daqueles saques, não tinha que se orgulhar disso, mas como sustentar um família,
enquanto o pai de Cibele era vivo ajudava e nunca fizeram nada disso, porém
depois que ele morreu tudo ficou mais difícil.
Carlos descia com o filho Abel
todas as vezes que um caminhão cai na ribanceira, queria ajudar o caminhoneiro,
e dar uma olhada na carga, a mulher Cibele se enchia de esperança, quem sabe a
carga não é valiosa dessa vez?
Abel não gostava, achava aquilo
ilegal e perigoso.
A carga na maioria das vezes era
cheia de coisas imprestáveis, laranja, detergente, óleo, a maioria das vezes
nada de carga valiosa, às vezes davam sorte de pegar algo para vender.
Devido a queda o invariável era encontrar o motorista morto, estava esbagaçado no meio das ferragem,
outras vezes se escutava a explosão e o caminhão virava cinzas, então Carlos
não descia, nem perdia tempo, alguns minutos chegavam curiosos, dias depois a Policia Rodoviária.
O dia do acidente era um achado
para Carlos e Família, (deus me perdoe, pensou Carlos ) no dia vendiam quase
tudo que tinham na quitanda, principalmente a cerveja, cachaça, provavelmente
ninguém chamava a policia pelo mesmo motivo, saquear a carga, para eles que não
conheciam o caminho da caverna da Broca, levava até três horas para da a volta,
então ficava todo mundo pianinho, o caminhoneiro que se dane.
Vendiam tudo: refrigerante,
salgados, batata e ovo, vinha gente de todos os lugares para ver a tragédia, o ser
humano é assim adora ver a tragédia dos outros.
A vida financeira de Carlos
estava no buraco, devia dinheiro até para agiota, o filho mais novo Matusalém,
tinha um problema de saúde e Carlos gastava muito dinheiro, dinheiro que não
tinha, pensou em vender a terra, a verdade é que arrecadaria pouco e não tinha
qualificação para trabalhar em nada.
Várias vezes chorava sozinho nos
seu monte das oliveiras, cada um tem o seu e o de Carlos era perto do
chiqueiro, ficava ali olhando para os porcos e pensando na felicidade deles, de
poder dormir e acordar sem pensar, sem saber do seu destino.
A noite de véspera de natal, com
pouca comida em casa, matou um leitão e abria um garrafão de vinho, só a
família, Cibele descobriu que estava grávida. Disse a família exatamente nesse
dia, primeiro Carlos ficou puto, devido a situação financeira do casal, depois
ele se acalmou.
-Você não tomou o remédio? –
perguntou Carlos.
-Sei lá, tomei, mas é remédio de
posto, quem sabe estava vencido – mulher de pobre pega filho fácil.
Eles sentaram-se à mesa, uma hora
rara, todos reunidos: filhos e a mulher quando ouviu o estrondo, um caminhão
rolou pela ribanceira, Carlos saiu pela porta, à noite de natal estava um breu,
não dava para ver nada.
Carlos estava eufórico e teve uma
certeza, não subiu o fogo da explosão, o caminhão estava intacto, havia uma
carga nova, bem na véspera de natal, isso seria um aviso de Deus.
-Abel, pegue a lanterna e as
botinas – disse beijando a esposa –Agora nós vamos descer e ver o que tem
naquele caminhão, aposto que é uma coisa muito boa – o filho Abel de quinze
anos não estava animado, correu e pegou todo o material para a descida.
-Pai é noite de natal, isso pode
ser um aviso de Deus, pense vale a pena?Roubar carga é crime – Carlos nem ouviu
o filho, colocou o equipamento nas costas e disse.
-Venha depois a gente conversa
sobre Deus, crime e outras preocupações – passou a mão na cabeça de Matusalém, aquele
filho que nasceu sem as pernas era parecido com ele, tinha a sua figura,
desceria sem perguntar, viu nos olhos de Matusalém a vontade de ir com o pai.
A descida era íngreme, usavam
cordas e grampos de alpinismo, foram até a gruta da Broca, mergulharam na água
fria e imunda do córrego, passaram para o outro lado.
Abel, mais treinado e com pulmão
de nadador foi o primeiro, desceu e gritou para o pai.
-Está ali perto da pedra – disse.
-Esse estava andando rápido –
disse Carlos ofegante - , poucos chegam perto da pedra, não deve ter sobrado
nada.
Andaram no meio da sucata, havia
um cheiro de podre, algo que nunca largava aquele lugar, vários homens haviam
morrido ali, havia quatro cadáveres dois metros acima, Carlos sabia disso, caminhoneiros
eram leões da estrada, às vezes imprudentes, pois usavam substancias para se
manter acordados, gente complicada que desvalorizava a própria vida diante do
valor de um frete.
A pedra ficava do outro lado da água,
Abel e Carlos teriam que passar pela água podre, aquele rio servia de deposito
de esgoto para a pequena cidade a frente da propriedade de Carlos, isso
acontecia mais na zona rural onde o esgoto ainda não estava sendo totalmente
tratado, crime ambiental do poder publico, depois eles falam em
sustentabilidade.
O fedor estava impregnando
Carlos, pois novamente tiveram que cruzar o rio e depois um capinzal para
chegar ao caminhão tombado, à cabine separou do resto da carroceria e ficou três
metros acima, não daria para ver a situação do motorista, porém ninguém
sobrevive a uma queda dessas.
Chegaram perto do caminhão: trata-se
do modelo Mercedes-Benz L-1313 dos anos de 1970 , antigo, não uma carreta como costuma
ocorrer, o interior estava em péssimo estado de conservação, a porta de trás
estava aberta.
-Tem várias caixas aqui pai, de
papelão, a maioria sabão em pó, creolina, sei lá!É só produto de limpeza –
disse Abel.
-Continue abrindo as caixas –
disse Carlos.
Abriram duas caixas, porém na
terceira, Abel disse.
-Pelo amor de Deus! – disse e
olhou para o pai – olha isso pai...
Carlos Alberto saiu correndo
parou sem ar, a sua frente perto do filho uma caixa cheia de notas de cem, cinquenta.
Jesus! Por baixo ali teriam dois a três milhões só naquela caixa, haveria mais?
-Isso é dinheiro de droga pai,
dinheiro sujo, só vai trazer desgraça para nossa família – disse Abel.
-Se pegarmos um pouco eles não
vão saber, pegamos e desaparecemos é assim, me dá a sua mochila. – pediu Carlos,tinha
um suor denso na sua testa, coberto por fulgem, sereno, Abel achou que o pai
sofria uma possessão, mudou misteriosamente, só tinha olhos para o dinheiro
-Tem certeza – disse Abel.
-Absoluta, criei você muito bem,
há momentos na vida do homem que ele precisa segurar a chance, aqui não há luta
entre bem e mal, é apenas sobrevivência, essa luta ingrata onde não existe
vitoria – disse colocando as notas na bolsa.
-Não pai, isso é a busca do luxo,
de riqueza, da soberba, lutando do nosso jeito podemos sobreviver – disse Abel.
-Por favor, me ajude, depois
conversaremos – disse Carlos, Abel, obediente fez o que o pai pedia.
Dois milhões em notas, tudo que
conseguiram carregar, subiram e andaram o caminho de volta.
Em casa para a surpresa de Abel
Cibele alegria(cúmplice do marido) e deu um beijo em
Carlos, que passou a mão na barriga da mulher.
-Largue tudo aqui, vamos embora,
deixamos a velha vida para trás - Carlos disse.
-Para onde vamos? – perguntou
Abel- minha vida é aqui, meus amigos estão aqui, minhas memórias.
Cibele se aproximou do filho, com
lagrimas nos olhos e disse de uma vez só.
-Abel, você é muito jovem, não
entende a luta que temos você deita no travesseiro e dorme porque é uma
criança, durante semanas eu e seu pai não dormimos, não comemos direito, não
nos amamos, precisamos reconstruir a nossa vida, precisamos desse dinheiro.
-Com dinheiro do crime?Nãopodemos
fugir disso, depois o que plantamos agora a vai colher depois.
-Besteira, você às vezes tem que
contar com a sorte e o acaso, nessa vida ninguém é totalmente inocente, peço a
você que me acompanhe, depois que estivermos em segurança você toma essa
decisão – pediu Cibele.
Matusalém veio empurrando a
cadeira velha e desbotada, parecia irritado, tinha um brilho estranho no olhar.
-Não estraga tudo, quer que eu
fique assim para o resto da vida, sem prótese, sem tratamento adequado, sem uma
cadeira, olhe para mim Abel, sou um deformado o dinheiro é a minha chance? –
disse olhando com raiva.
Abel olhou a volta, não sabia o
que fazer, adiou a decisão.
-Está bem, mas depois em decido o
meu caminho- disse Abel.
-Para um hotel, pela manhã
compramos um carro, talvez um trailer e sumiremos nesse mundo, chega de
pobreza.
Nunca mais foram vistos.
Dois dias depois um homem de
preto bateu a porta deles, o fedor dos porcos mortos de fome e da carne
estragada denunciava que não havia ninguém.
-Eles não estão aqui – disso o
homem de preto – eu acho que compraram um trailer em Vitoria e picaram a mula
no mundo.
Uma voz no telefone falou.
-Vá e mate todos, eu quero o meu
dinheiro de volta. – disse a voz.
-Tem um problema chefe – disse o
homem de terno – acho que já estão todos mortos, encontramos o triler
carbonizado em uma curva, um de meus homens achou corpos carbonizados e umas
cédulas queimadas,a curva muito fechada parecida com essa que o nosso caminhão
caiu, posso continuar a busca, a curva fica a quarenta quilômetros daqui,
parece que perdemos o dinheiro, ele virou pó, ou melhor, cinza.
-Tem certeza?
-Tenho.
-Mesmo assim continue a busca,
pai mãe irmão aleijado, não será difícil de achar esse povo – disse a voz.
-O senhor é quem manda. – disse o
homem de preto colocando gasolina na casa de Carlos, depois ateou fogo.
Na praia Cibele olhou para Carlos
Alberto.
-Como pode pensar naquilo?
-Os corpos dos caminhoneiros no
lugar dos nossos? Palpite, para alguma coisa serviu morar perto de um cemitério
de caminhões.
-Onde estão os meninos? –
perguntou Carlos para a mulher Cibele.
-No hotel – disse Cibele.
-Acabei de vir de lá não tem ninguém no hotel.
-Acho que vi Matusalém falando
com um senhor – disse Cibele.
Carlos resolveu voltar ao hotel e
falar com o filho Abel, que ele tinha razão, estava livre para procurar o seu
caminho.
Perto do hotel bem na saída, Carlos encontrou Matusalém
empurrando um sua cadeira nova.
-Oi pai. – disse sorrindo.
-Cadê Abel?
Matusalém falou baixo.
-Dei um jeito nele, queria
entregar a gente.
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