segunda-feira, 3 de junho de 2013

A GRANDE CHANCE



A GRANDE CHANCE
Carlos Alberto tinha uma vida simples à beira da estrada, sua casa ficava a cinco metros do asfalto, tinha uma terra, que herdou do pai, onde plantava umas mudas de milho e uns pés de banana, além de ter uma vendinha, pequena mesmo, para aquelas pessoas que estavam cansadas da estrada e queria dar uma paradinha, tomar um café e comer um pão com linguiça.
Carlos cuidava do negocio familiar com a mulher Cibele e os dois filhos Abel e Matusalém.
Filhos bem diferentes.
Abel tinha dezessete anos, robusto, bonito igual à mãe, tinha cabelos pretos e olhos verdes, pele morena curtida de sol, Carlos pensava que o menino era de outro mundo, religioso, preocupado com o irmão,tudo porque Matusalém nasceu com um defeito congênito na perna: elas eram rudimentares, coisa que so acontecia na década de oitenta ligada a talidomida, os medico não sabem dizer porque, pois Cibele não tomava nenhum remédio na época, com quinze anos, fazia tudo, ativo e andava de cadeira de rodas.
 Abel era um adolescente atípico, vivia no mundo da lua, ele gostava do campo, dos bichos, da igreja e dos livros, as pessoas achavam que seria padre, porém Abel negava, queria casar e ter filhos, constitui uma solida moral herdada do avô materno.
O avô morreu no ano passado, ex-professor de português, era o esteio e o equilíbrio da família, também o ultimo parente vivo, Abel herdou o caráter e aparência do avô.
Quando o avô morreu Abel tinha apenas dezesseis anos, foi a única vez que chorou com a alma, herdou todos os seus livros, ele mesmo construiu um quartinho onde guardava os livros, ficava trancado ali por horas, esquecia-se do tempo, então o pai gritava:
-Abel vem trabalhar, larga os malditos livros – dizia sem pensar, Abel sabia que o pai gostava do habito que o filho tinha de ler.
Matusalém tinha que ir junto para a lida na roça, Abel o carregava em um carrinho de mão, muitas vezes sentia uma dor pelo irmão, sem as pernas não poder seguir os passos do pai, ele ficava grotesco sobre o carrinho de mão enquanto eles plantavam o milho, batia palmas.
-Pai não é melhor deixar o Matusalém em casa? – disse Abel uma vez.
-Tem vergonha do seu irmão? – nunca mais falou no assunto.
A vida era tranquila, acordavam, havia a rotina da escola, a lida na roça, tratar dos animais, tudo feito com método, passavam pelos dias rapidamente, diferentes da cidade grande onde tudo era truncado, pelos filas e engarrafamento, pelo tempo que urge e ruge contra as pessoas, horário o compromisso.
 O filho Matusalém estava em uma escola especial e Abel que levava de bicicleta, ou de carrinho de mão, eles sofriam com a brincadeira dos outros meninos.
-Já vai levar o seu irmão aleijado, Abel? – disse um.
-Dá uma pedrada neles – dizia Matusalém.
-Deixa pra lá, essa gente é assim mesmo – contemporizava o calmo Abel.
A velocidade dos caminhões e carros era extravagante, às vezes o barulho nem deixava dormir.
O problema todo é que a frente da casa de Carlos tinha aquela curva maldita, chamada curva da morte, uma curva tão acentuada e que muitos caminhões caiam na ribanceira, a população local chamou o lugar de cemitério de caminhões.
A coisa era tão feia que havia um boato de que a alma de um caminhoneiro andava por lá, ninguém descia a ribanceira, alguns saqueadores de cargas tentavam entrar pelas terras de Carlos Alberto, porém havia um rio e a descia era muito feia, íngreme, só para alpinistas experimentados, só quem conhecia a passagem pela caverna da Broca conseguia chegar do outro lado, devia ter mais de dez caminhões lá embaixo.
A retirada desses caminhões era difícil e dispendiosa, principalmente no critério financeiro, porém alguns dessas empresas mandavam gente especializada para resgatar a carga, outros deixavam lá, pois o custo da retirada era maior, então devagarzinho ou a carga ia apodrecendo ou era saqueada.
Alguns casos levavam-se meses para se descobrir que o caminhão de certa empresa havia caído bem ali, então os corpos de caminhoneiros e ajudantes ficavam apodrecendo lá embaixo, Carlos sabia de quatro deles que caíram na semana anterior, porém não podia avisar a policia, pois a carga lhe interessava, Jô não conseguia trazer toda, quando acabasse informaria a autoridade policial.
O local era desconhecido, muitos caminhoneiros desviavam por ali para fugir das balanças, ninguém ficava sabendo da queda até que o próprio Carlos comunicava a empresa, as vezes era carros de passeio mesmo.
Parte do seu modo de vida vinha daqueles saques, não tinha que se orgulhar disso, mas como sustentar um família, enquanto o pai de Cibele era vivo ajudava e nunca fizeram nada disso, porém depois que ele morreu tudo ficou mais difícil.
Carlos descia com o filho Abel todas as vezes que um caminhão cai na ribanceira, queria ajudar o caminhoneiro, e dar uma olhada na carga, a mulher Cibele se enchia de esperança, quem sabe a carga não é valiosa dessa vez?
Abel não gostava, achava aquilo ilegal e perigoso.
A carga na maioria das vezes era cheia de coisas imprestáveis, laranja, detergente, óleo, a maioria das vezes nada de carga valiosa, às vezes davam sorte de pegar algo para vender.
Devido a queda o  invariável era encontrar o motorista  morto, estava esbagaçado no meio das ferragem, outras vezes se escutava a explosão e o caminhão virava cinzas, então Carlos não descia, nem perdia tempo, alguns minutos chegavam curiosos, dias depois a  Policia Rodoviária.
O dia do acidente era um achado para Carlos e Família, (deus me perdoe, pensou Carlos ) no dia vendiam quase tudo que tinham na quitanda, principalmente a cerveja, cachaça, provavelmente ninguém chamava a policia pelo mesmo motivo, saquear a carga, para eles que não conheciam o caminho da caverna da Broca, levava até três horas para da a volta, então ficava todo mundo pianinho, o caminhoneiro que se dane.
Vendiam tudo: refrigerante, salgados, batata e ovo, vinha gente de todos os lugares para ver a tragédia, o ser humano é assim adora ver a tragédia dos outros.
A vida financeira de Carlos estava no buraco, devia dinheiro até para agiota, o filho mais novo Matusalém, tinha um problema de saúde e Carlos gastava muito dinheiro, dinheiro que não tinha, pensou em vender a terra, a verdade é que arrecadaria pouco e não tinha qualificação para trabalhar em nada.
Várias vezes chorava sozinho nos seu monte das oliveiras, cada um tem o seu e o de Carlos era perto do chiqueiro, ficava ali olhando para os porcos e pensando na felicidade deles, de poder dormir e acordar sem pensar, sem saber do seu destino.
A noite de véspera de natal, com pouca comida em casa, matou um leitão e abria um garrafão de vinho, só a família, Cibele descobriu que estava grávida. Disse a família exatamente nesse dia, primeiro Carlos ficou puto, devido a situação financeira do casal, depois ele se acalmou.
-Você não tomou o remédio? – perguntou Carlos.
-Sei lá, tomei, mas é remédio de posto, quem sabe estava vencido – mulher de pobre pega filho fácil.
Eles sentaram-se à mesa, uma hora rara, todos reunidos: filhos e a mulher quando ouviu o estrondo, um caminhão rolou pela ribanceira, Carlos saiu pela porta, à noite de natal estava um breu, não dava para ver nada.
Carlos estava eufórico e teve uma certeza, não subiu o fogo da explosão, o caminhão estava intacto, havia uma carga nova, bem na véspera de natal, isso seria um aviso de Deus.
-Abel, pegue a lanterna e as botinas – disse beijando a esposa –Agora nós vamos descer e ver o que tem naquele caminhão, aposto que é uma coisa muito boa – o filho Abel de quinze anos não estava animado, correu e pegou todo o material para a descida.
-Pai é noite de natal, isso pode ser um aviso de Deus, pense vale a pena?Roubar carga é crime – Carlos nem ouviu o filho, colocou o equipamento nas costas e disse.
-Venha depois a gente conversa sobre Deus, crime e outras preocupações  – passou a mão na cabeça de Matusalém, aquele filho que nasceu sem as pernas era parecido com ele, tinha a sua figura, desceria sem perguntar, viu nos olhos de Matusalém a vontade de ir com o pai.
A descida era íngreme, usavam cordas e grampos de alpinismo, foram até a gruta da Broca, mergulharam na água fria e imunda do córrego, passaram para o outro lado.
Abel, mais treinado e com pulmão de nadador foi o primeiro, desceu e gritou para o pai.
-Está ali perto da pedra – disse.
-Esse estava andando rápido – disse Carlos ofegante - , poucos chegam perto da pedra, não deve ter sobrado nada.
Andaram no meio da sucata, havia um cheiro de podre, algo que nunca largava aquele lugar, vários homens haviam morrido ali, havia quatro cadáveres dois metros acima, Carlos sabia disso, caminhoneiros eram leões da estrada, às vezes imprudentes, pois usavam substancias para se manter acordados, gente complicada que desvalorizava a própria vida diante do valor de um frete.
A pedra ficava do outro lado da água, Abel e Carlos teriam que passar pela água podre, aquele rio servia de deposito de esgoto para a pequena cidade a frente da propriedade de Carlos, isso acontecia mais na zona rural onde o esgoto ainda não estava sendo totalmente tratado, crime ambiental do poder publico, depois eles falam em sustentabilidade.
O fedor estava impregnando Carlos, pois novamente tiveram que cruzar o rio e depois um capinzal para chegar ao caminhão tombado, à cabine separou do resto da carroceria e ficou três metros acima, não daria para ver a situação do motorista, porém ninguém sobrevive a uma queda dessas.
Chegaram perto do caminhão: trata-se do modelo Mercedes-Benz L-1313 dos anos de 1970 , antigo, não uma carreta como costuma ocorrer, o interior estava em péssimo estado de conservação, a porta de trás estava aberta.
-Tem várias caixas aqui pai, de papelão, a maioria sabão em pó, creolina, sei lá!É só produto de limpeza – disse Abel.
-Continue abrindo as caixas – disse Carlos.
Abriram duas caixas, porém na terceira, Abel disse.
-Pelo amor de Deus! – disse e olhou para o pai – olha isso pai...
Carlos Alberto saiu correndo parou sem ar, a sua frente perto do filho uma caixa cheia de notas de cem, cinquenta. Jesus! Por baixo ali teriam dois a três milhões só naquela caixa, haveria mais?
-Isso é dinheiro de droga pai, dinheiro sujo, só vai trazer desgraça para nossa família – disse Abel.
-Se pegarmos um pouco eles não vão saber, pegamos e desaparecemos é assim, me dá a sua mochila. – pediu Carlos,tinha um suor denso na sua testa, coberto por fulgem, sereno, Abel achou que o pai sofria uma possessão, mudou misteriosamente, só tinha olhos para o dinheiro
-Tem certeza – disse Abel.
-Absoluta, criei você muito bem, há momentos na vida do homem que ele precisa segurar a chance, aqui não há luta entre bem e mal, é apenas sobrevivência, essa luta ingrata onde não existe vitoria – disse colocando as notas na bolsa.
-Não pai, isso é a busca do luxo, de riqueza, da soberba, lutando do nosso jeito podemos sobreviver – disse Abel.
-Por favor, me ajude, depois conversaremos – disse Carlos, Abel, obediente fez o que o pai pedia.
Dois milhões em notas, tudo que conseguiram carregar, subiram e andaram o caminho de volta.
Em casa para a surpresa de Abel Cibele   alegria(cúmplice do marido) e deu um beijo em Carlos, que passou a mão na barriga da mulher.
-Largue tudo aqui, vamos embora, deixamos a velha vida para trás - Carlos disse.
-Para onde vamos? – perguntou Abel- minha vida é aqui, meus amigos estão aqui, minhas memórias.
Cibele se aproximou do filho, com lagrimas nos olhos e disse de uma vez só.
-Abel, você é muito jovem, não entende a luta que temos você deita no travesseiro e dorme porque é uma criança, durante semanas eu e seu pai não dormimos, não comemos direito, não nos amamos, precisamos reconstruir a nossa vida, precisamos desse dinheiro.
-Com dinheiro do crime?Nãopodemos fugir disso, depois o que plantamos agora a vai colher depois.
-Besteira, você às vezes tem que contar com a sorte e o acaso, nessa vida ninguém é totalmente inocente, peço a você que me acompanhe, depois que estivermos em segurança você toma essa decisão – pediu Cibele.
Matusalém veio empurrando a cadeira velha e desbotada, parecia irritado, tinha um brilho estranho no olhar.
-Não estraga tudo, quer que eu fique assim para o resto da vida, sem prótese, sem tratamento adequado, sem uma cadeira, olhe para mim Abel, sou um deformado o dinheiro é a minha chance? – disse olhando com raiva.
Abel olhou a volta, não sabia o que fazer, adiou a decisão.
-Está bem, mas depois em decido o meu caminho- disse Abel.
-Para um hotel, pela manhã compramos um carro, talvez um trailer e sumiremos nesse mundo, chega de pobreza.
Nunca mais foram vistos.
Dois dias depois um homem de preto bateu a porta deles, o fedor dos porcos mortos de fome e da carne estragada denunciava que não havia ninguém.
-Eles não estão aqui – disso o homem de preto – eu acho que compraram um trailer em Vitoria e picaram a mula no mundo.
Uma voz no telefone falou.
-Vá e mate todos, eu quero o meu dinheiro de volta. – disse  a voz.
-Tem um problema chefe – disse o homem de terno – acho que já estão todos mortos, encontramos o triler carbonizado em uma curva, um de meus homens achou corpos carbonizados e umas cédulas queimadas,a curva muito fechada parecida com essa que o nosso caminhão caiu, posso continuar a busca, a curva fica a quarenta quilômetros daqui, parece que perdemos o dinheiro, ele virou pó, ou melhor, cinza.
-Tem certeza?
-Tenho.
-Mesmo assim continue a busca, pai mãe irmão aleijado, não será difícil de achar esse povo – disse a voz.
-O senhor é quem manda. – disse o homem de preto colocando gasolina na casa de Carlos, depois ateou fogo.
Na praia Cibele olhou para Carlos Alberto.
-Como pode pensar naquilo?
-Os corpos dos caminhoneiros no lugar dos nossos? Palpite, para alguma coisa serviu morar perto de um cemitério de caminhões.
-Onde estão os meninos? – perguntou Carlos para a mulher Cibele.
-No hotel – disse Cibele.
-Acabei de vir de lá  não tem ninguém no hotel.
-Acho que vi Matusalém falando com um senhor – disse Cibele.
Carlos resolveu voltar ao hotel e falar com o filho Abel, que ele tinha razão, estava livre para procurar o seu caminho.
 Perto do hotel bem na saída, Carlos encontrou Matusalém empurrando um sua cadeira nova.
-Oi pai. – disse sorrindo.
-Cadê Abel?
Matusalém falou baixo.

-Dei um jeito nele, queria entregar a gente.

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